A partir da obra “As aventuras de João Sem Medo”, de José Gomes Ferreira
Aventuras foi considerado, no Krokusfestival em Hasselt, por unanimidade pelo júri (constituído por crianças entre os 9 e 12 anos) como o melhor espetáculo do festival.
Este é um espectáculo “proibido a quem não andar constantemente espantado por existir.” A partir de duas obras de ficção com o mesmo título, uma do autor português José Gomes Ferreira e outra do autor flamengo Constant de Kinder, a companhia Laika, theater van den zinnen e Prado – Associação Cultural unem-se para criar um labirinto móvel onde se pode percorrer a história de dois Joões Sem Medo. O primeiro, amado pelos leitores portugueses, é um habitante da aldeia Chora-que-logo-bebes, um lugar inóspito “onde as pessoas de tanto chorarem trazem musgo nos olhos e verdete na boca”. Um rapaz que um dia salta o muro que separa a sua aldeia do resto do mundo para encontrar homens sem cabeça, pedras do caminho que abocanham pés saltitantes, ou canibais mágicos que nos transformam em árvores. O segundo, sobejamente conhecido do público de Antuérpia, é o temido Duque de Borgonha e Conde da Flandres, caracterizado pela sua bravura (e brutalidade) no campo de batalha. Ambos se chamam João Sem Medo. E ambos têm algo de muito sério em comum: Desafiam o medo que têm e ganham coragem, seja através da confiança que têm nos seus sentidos e intuições, seja exercitando em pleno o músculo mais forte que temos no corpo: o da imaginação.
Partindo de questões como: Porque temos medo? Ou Como podemos lidar com o que tememos?, pretendemos construir uma instalação interactiva e sensorial onde os participantes são convidados a escolher (sempre em conjunto) as aventuras que desejam percorrer e em que mundos mergulhar, ultrapassando bifurcações e desafios, superando dúvidas e partilhando, em conjunto, ansiedades mas também novas possibilidades de olhar e de conviver com o medo. Salas com Vinis comestíveis e gramofones com asas onde podemos construir o ambiente sonoro da história, corredores que ficam mais pequenos à nossa passagem ou grutas que cheiram muito mal, são alguns dos lugares que poderemos percorrer e que apelam aos 5 sentidos, convocando ainda as escolas a organizarem-se em grupo para solucionarem cada obstáculo que surge a cada etapa. Esta instalação-performance será realizada em duas versões – uma em neerlandês, que circulará pela Bélgica e pela Holanda, e uma portuguesa, que percorrerá os países de língua portuguesa. Este espectáculo vem na sequência do espectáculo Fúrias (2020, Teatro São Luiz) onde traduzimos a obra de Toon Tellegen para falar das raivas internas que todos carregamos (especialmente num período como o da pandemia). Desta vez queremos divulgar a obra de um autor português na Bélgica e com ele falar de um assunto que paira nas cabeças e corações de todos os pais e professores que viram crianças e adolescentes crescer fechados em casa e com a tele-escola e o tel-móvel como únicos recursos para falar com o exterior: O medo! do que está lá fora! do que nos pode pôr doentes! Do que somos! do que não conhecemos. A saúde mental há muito que é uma das prioridades do trabalho da Associação Prado (que se estende em performances, conferências,instalações, etc) e da companhia Laika (companhia belga de renome que faz espectáculos sensoriais e gastronómicos que circulam por toda a Europa). A vontade de transformar a obra de José Gomes Ferreira em experiência física num labirinto que se possa construir num teatro, mas também num ginásio de uma escola ou num armazém perto de uma lugar frequentado por jovens, tem como desejo máximo exercitar o tal músculo da imaginação para que nos acompanhe sempre em todos os momentos (felizes, mas também mais assustadores) e para que seja o primeiro a ser exercitado em caso de pânico. O Joao sem Medo de Gomes Ferreira canta para espantar os seus males, conversa com as bruxas, troca dedos mindinhos por bitoques, ri do medo quando está amedrontado e desafia o que mais teme. O João sem medo da Flandres decapita tudo o que vê à frente, envolve-se em qualquer escaramuça, fina-se de forma tão violenta como viveu.
Como queremos lidar com o medo e com as emoções que provoca, é o tema central desta instalação que reune uma equipa artística metade belga e metade portuguesa que, na sua génese, também encontrará os seus desafios na criação de uma obra que lida com adolescentes e crianças que são educadas em dois países europeus com tradições distintas (literárias e sociais), e consequentemente, amedrontados de maneiras diversas.
Público alvo/Faixa Etária
A partir dos 8 anos
Espetáculo escolar: a partir do 4º ano do ensino básico
Número máximo: 50
Será disponibilizado material didático
Ficha Técnica
Encenação e texto: Patrícia Portela
Dramaturgia: Mieke Versyp
Intérpretes portugueses: Miguel Baltazar, Vanda R Rodrigues e Sara Alexandra
Cenografia: Peter de Bie
Sonoplastia: Miguel Abras
Produção: Prado, Associação Cultural e Laika
Co-produtores: Lavrar o Mar, Rota Clandestina e Teatro Oficina
Com o apoio de Era uma Voz, Teatro Ibisco, Pausa Possível, Câmara Municipal de Lisboa/Quinta
Alegre e Antípoda
Imagem: © Sarah Verhoeven & Thomas De Brabanter
Um espetáculo de teatro com grande participação do público e até com elementos de workshop (realização de tarefas) incorporados. É isso que a Laika traz com a sua última produção, Aventuras. A companhia não opta por um cenário de teatro clássico. Mas leva as crianças com mais de nove anos de idade numa aventura, seguindo um trilho com elas e a instalação de Peter De Bie, sob a forma de um carrossel, desafia-as. O mundo quando regressam a casa pode não ter mudado, mas eles próprios podem ter mudado.
Aventuras é sobre ultrapassar os medos e ter coragem de os enfrentar. Algo que combina perfeitamente com o mundo das crianças, enquanto o espetáculo foi inspirado no romance Aventuras de João Sem Medo, do autor português José Gomes Ferreira. Este último escreveu o seu livro numa altura em que o ditador Salazar estava no poder, nos anos 30, e os portugueses viviam com medo. A artista portuguesa Patrícia Portela trabalhou com o material de origem e extraiu algumas personagens e enredos. Tudo isto resulta em mini-cenas sem ligação entre si, mas que confrontam os jovens espectadores consigo próprios. Filosófico e poético, Aventuras é como um apelo caloroso a um pouco mais de encanto e imaginação.
Entre outras coisas, Aventuras coloca às crianças a questão de saber o que deixariam como parte do corpo se estivessem no deserto e precisassem de água, sombra, um camelo, etc. O que podes prescindir de ti? questiona. Delicioso é o momento em que se faz referência a Ricardo III, de Shakespeare, quando se diz que alguém dispensaria a sua perna esquerda por um cavalo? Há quem dê um reino inteiro por um cavalo, porque não uma perna esquerda?”
Às vezes é preciso ousar mergulhar na vida para talvez descobrir coisas maravilhosas que podem mudar a nossa vida, afirma Aventuras logo no início do espetáculo, quando todos estamos em frente a uma parede falante que nos convida a sentir o que é realmente ter um tijolo no estômago, que é o que tantas vezes se diz dos flamengos.
Felicidade, infelicidade, medo… o que é que nos espera por detrás desse muro na Floresta Branca, onde é proibido entrar porque se diz que é perigoso? O objetivo é pôr tudo em movimento no final da viagem. Um grande homem sem cabeça recebe-nos. Numa bandeja de madeira, tem uma coisa gelatinosa de cor rosa-salmão com a forma de dois lóbulos cerebrais. Ele pede-nos que percamos a cabeça de uma vez por todas. Porque uma cabeça traz muitos problemas. Sem ela, não temos de ir ao cabeleireiro, não sofremos de piolhos e muito menos de outras dores de cabeça e não temos de aprender nada. É maravilhoso, não é?
Embora nos tenhamos perdido a meio, Aventuras também permite ao público sentir o sabor do ar, ser confrontado com a solidão, com o medo de rastejar para debaixo da cama em casa, e num quarto onde todo o tipo de coisas acontecem dentro das quatro paredes, incluindo coisas que prefeririam que não acontecessem no seu próprio quarto. Trata-se também de desejos, de poder ser árvore, de poder crescer e de detestar os casais apaixonados que gravam corações no tronco de uma árvore.
A verdade nua e crua parece ter fome e busca alimento. Somos convidados a nos aproximar dela em busca por algo comestível para lhe dar. Quando este seu momento de fome passa, ela nos apresenta o dilema de saber se dizer a verdade é sempre uma boa ideia. Porque pode doer. Defender-se e ousar ir contra uma situação protestando, ousando desenhar fora das linhas (de giz), nas quais Aventuras também tenta encorajar as crianças, para que, na melhor das hipóteses ,elas saiam diferentes desta aventura, pois tudo o que descobriram na Floresta Branca continua a viver dentro deles como água escorrendo do alto-falante de um gramofone.